Correndo em direção ao mar

Correndo em direção ao mar

sexta-feira, 21 de maio de 2010

As três flores e o verme

Há um esgoto de vermes perto de lá.
Lá?
É um jardim.
De flores, naturalmente.
Ah sim
Claro.
Há três.
Não três variedades.
Três flores.
É, três unidades.
Por que o espanto?
Existe acaso lei que reza sobre a quantificação das flores de um jardim?
Flores. S. Jardim.
Ah, só se tem a experiência vivendo.
Deve-se ir lá.
Se entorpecer com o perfume.
Posso descrevê-las:
A primeira é branca.
Simplesmente.
Robusta também.
Tem incontáveis pétalas. Microscópicas. Que coletivamente nos imprimem a sensação de que a flor consitui-se de uma pétala única.
Engraçado.
Seu nome é R.
A segunda é também robusta, mas de uma maneira distinta.
É longelínea, percebe?
É de um rosa quase que sagrado.
Diz-se ser a flor dos anjos.
O seu perfume é inseguro, e por ser assim, se sobrepõe aos outros.
Seu nome é L.
A terceira é radicalmente diferente das anteriores.
Tem poucas pétalas, meia dúzia, se não me engano.
É amarela.
Meio termo.
Seu miolo é verde.
Meio termo.
Seu perfume é forte, agressivo, insuportável para alguns.
A mim é bastante aprazível.
Emerge da terra isoladamente das anteriores, que costumam florescer quase que de maneira siamesa, mas ocorre, com certa periodicidade, de também florescer como as outras.
Seu nome é B.
É um jardim verdadeiramente magnífico.
E peculiar.
Porque há nele um invasor desejável.
Um verme.
Não se enoje, ele é distinto dos demais.
É um verme luminescente.
Impressionante, um fenômeno formidável.
Enfim, não sei definir a relação dele com as flores.
Acho que algo entre comensalismo e mutualismo.
Eles passam longos períodos na companhia uns dos outros.
E quando ocorre a triangulação iniciam-se os períodos de tormenta e consequente devastação.
A triangulação?
O verme no esgoto.
R e L siamesas.
B isolada.
O jardim torna-se desprezível.
Não sei. Talvez seja. Maldição. Feitiço ou algo do tipo. Os quatro jamais conseguiram se manter unidos.
É algo vital, ainda que paradoxo.
Não se entristeça.
Fraco.
Não percebe que o sol nasce todos os dias, indubitavelmente, por volta das 6 da manhã?

quinta-feira, 6 de maio de 2010

A lenda da sussuarana e do veado campeiro

Houve um dia em que a sussuarana se apaixonou pelo veado campeiro. O olhar molhado do veado cruzou com o olhar certeiro da sussuarana, e pela primeira vez não houve medo, nem cautela. Houve fogo. O olhar do veado campeiro perdeu a umidade e deu lugar à entrega, e as vistas da sussuarana perderam a precisão para dar vazão ao desejo. E o que nascia daquele embate de luminosidades era uma atmosfera inusitadamente envolvente. Quase como um delírio.
O veado então usou sua coluna saliente para, numa dança ritualística, seduzir a sussuarana. E a sussuarana hipnotizou-se pelo movimento ingenuamente voluptuoso do veado, e havia baba nos seus caninos. Porém, naquele dia não houve ataque. A sussuarana escoltou o veado pelo seu caminho de cerrado. O veado ia altivo, a sussuarana ia cautelosa. Podia-se ver (concretamente) a energia desesperadamente protetora que emanava dos poros dilatados da sussuarana. Ela era vermelha.
Aquela dupla grotesca caminhou por 58 minutos, até que alcançaram um riacho. Ele cintilava prateado graças ao banho de luz viscoso que derramava daquela lua branca, um pomo de algodão. Na beira do riacho, o veado parou. Baixou suavemente sua cabeça em direção às águas trepidantes e sorveu um curto gole de luar. A sussuarana observava estanque, e aquele desespero crescia no seu de dentro. Seu coração bombeava violentamente tanto sangue que seus olhos ficaram vermelhos de sofreguidão. E quando a sussuarana fraquejou, quando ela ia tombar, quando ela ia ceder de ar(dor) o veado calmamente recostou sua face no pescoço do felino, fazendo-o estremecer. E foi como um exorcismo. A sussuarana se recompôs, expandiu sua ossadura (musculatura, pelagem...), abriu suas patas em asa e envolveu o veado, pressionando-o vigorosamente contra seu peito. O veado sequer resistiu, e se entregou aquele carinho brutal. A sussuarana apertava com tanto desejo o corpo frágil do veado campeiro, que chegou um momento em que os ossos do antílope se esfarelaram em pó calcificado, seus órgãos vazaram num líquido viscoso, e o corpo do veado ficou mole, como um pedaço de couro de caça. Quando, enfim, vislumbrou admirada seu feito, a sussuarana entrou em estado de desatino: extendeu suas garras para fora de suas patas, ergueu seus punhos e desferiu golpe justo e certeiro em seu peito. Abriu nele um buraco. Encontrou a morada de seu coração. O arrancou ainda pulsante de dentro de si, enxertando-o em seguida no peito murcho do veado, que despertou, fugindo apavorado da fera apaixonada. A sussuarana, apenas contemplou imóvel o disparo do veado. Profundamente desiludida. Profundamente desamparada. E desde então, sussuarana vaga pelos cerrados da vida, em busca de animal de coragem, o qual ele possa profanar, matar e em seguida roubar seu coração para, finalmente, restaurar em si o amor.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Resposta

Você diz:

Então nada.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Metáfora de um dia de sábado pela manhã

Minha metáfora:

Eu estou na praia. Deitado na areia. Vejo o Sol e nuvens que ocupam o azul do céu. A maré sobe lenta e gradativamente. Você está no mar. Nada me preocupa. Apenas a indefinição entre morrer afogado e nadar.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Para Fabrício

O homem resolveu abandonar sua posição hierarquicamente desinteressante para dar curso aos sentimentos verdadeiramente puros que habitavam seu coração naquela manhã de sol, porém fria. Levantou-se calmamente da cadeira às 10:36 da manhã, e naquele dia não desligou os equipamentos eletronicamente programados para diminuir o amor do mundo; apenas os deixou ligados para quem sabe haver de fato algum encolhimento. Abriu a porta daquele gabinete frio e seco: via as digitais esbranquiçadas das suas mãos e podia sentir fendas nos seus lábios. Saiu pelo corredor, caminhando calmamente todos aqueles calabouçais 1435 metros de distância que separavam sua sala gelada da saída para aquela avenida, ampla, larga e bem iluminada. Deixou aquela instituição latino americana de ensino, internacionalmente reconhecida por formar (com excelência) jovens e talentosos profissionais especializados na aniquilação particulada de toda forma de amor que há no mundo, e iniciou pálido, porém solene, a travessia daquela avenida cor de tempestade. Entre a quinta e a sexta faixa das dez que constituíam o seguro atravessamento para pedestres, ele estancou sua caminhada, virou-se para os dragões de komodo que destilavam monóxido de carbono aguardando apenas pela luz verde do sinal e, com voz de gueixa, balbuciou

e posto que na vida só há amor que se contrai, encontrei dentre feras e barbárie um homem de bondade, com coração mole, tão mole que ao se lançar nele, percebe-se fagocitado por tanto amor e conforto Este homem é meu amigo, oh meu Deus, que eu amo tanto a ponto de revelar publicamente que, eu não sei ser feliz se ele não for meu companheiro.

O sinal ficou verde. E é claro que ninguém ouviu uma palavra do que ele disse. Só o que se viu foram os restos de gente espalhados, logo depois que os dragões famintos estraçalharam aquele corpo órfão, porém honesto.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Constatação

Ele tem medo de mim. Se soubesse como sou inofensivo me abraçaria me apertaria contra seu tórax parcamente peludo me embalaria ao som do seu canto e me chamaria de seu, com a ferocidade de um posseiro.
Mas é o que ele faz.
Então ele não tem medo.

Paradoxo

Eu queria muito escrever algo pesado, mas o que acontece é que eu estou leve.
Eu penso que escrever é algo misterioso. E acho escusas minhas motivações. Pois não escrevo, deponho. E ao depor, exponho o que é mais de mim do que eu mesmo. Exponho o élan de meus impulsos. Escancaro o que me parasita o coração.
Porém você matou este parasita.
E agora só sei ser leve.
E eu queria te odiar queria te cuspir na cara queria te exorcizar do meu de dentro queria te fazer pequeno te colocar na palma da mão te ventar para longe de mim e contemplar (num alívio) seu voo queria te enojar queria te surrar a face por 30 minutos queria gritar nos seus ouvidos um grito supersônico que estraçalhasse em nove mil quinhentos e sessenta e dois os ossos do seu canal auditivo.
E o meu querer se frustra na minha vontade.
E eu só sei te querer, como um louco, um infinito a mais por fração de instante que espero (paciente) por seu telefonema.