Correndo em direção ao mar

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quinta-feira, 6 de maio de 2010

A lenda da sussuarana e do veado campeiro

Houve um dia em que a sussuarana se apaixonou pelo veado campeiro. O olhar molhado do veado cruzou com o olhar certeiro da sussuarana, e pela primeira vez não houve medo, nem cautela. Houve fogo. O olhar do veado campeiro perdeu a umidade e deu lugar à entrega, e as vistas da sussuarana perderam a precisão para dar vazão ao desejo. E o que nascia daquele embate de luminosidades era uma atmosfera inusitadamente envolvente. Quase como um delírio.
O veado então usou sua coluna saliente para, numa dança ritualística, seduzir a sussuarana. E a sussuarana hipnotizou-se pelo movimento ingenuamente voluptuoso do veado, e havia baba nos seus caninos. Porém, naquele dia não houve ataque. A sussuarana escoltou o veado pelo seu caminho de cerrado. O veado ia altivo, a sussuarana ia cautelosa. Podia-se ver (concretamente) a energia desesperadamente protetora que emanava dos poros dilatados da sussuarana. Ela era vermelha.
Aquela dupla grotesca caminhou por 58 minutos, até que alcançaram um riacho. Ele cintilava prateado graças ao banho de luz viscoso que derramava daquela lua branca, um pomo de algodão. Na beira do riacho, o veado parou. Baixou suavemente sua cabeça em direção às águas trepidantes e sorveu um curto gole de luar. A sussuarana observava estanque, e aquele desespero crescia no seu de dentro. Seu coração bombeava violentamente tanto sangue que seus olhos ficaram vermelhos de sofreguidão. E quando a sussuarana fraquejou, quando ela ia tombar, quando ela ia ceder de ar(dor) o veado calmamente recostou sua face no pescoço do felino, fazendo-o estremecer. E foi como um exorcismo. A sussuarana se recompôs, expandiu sua ossadura (musculatura, pelagem...), abriu suas patas em asa e envolveu o veado, pressionando-o vigorosamente contra seu peito. O veado sequer resistiu, e se entregou aquele carinho brutal. A sussuarana apertava com tanto desejo o corpo frágil do veado campeiro, que chegou um momento em que os ossos do antílope se esfarelaram em pó calcificado, seus órgãos vazaram num líquido viscoso, e o corpo do veado ficou mole, como um pedaço de couro de caça. Quando, enfim, vislumbrou admirada seu feito, a sussuarana entrou em estado de desatino: extendeu suas garras para fora de suas patas, ergueu seus punhos e desferiu golpe justo e certeiro em seu peito. Abriu nele um buraco. Encontrou a morada de seu coração. O arrancou ainda pulsante de dentro de si, enxertando-o em seguida no peito murcho do veado, que despertou, fugindo apavorado da fera apaixonada. A sussuarana, apenas contemplou imóvel o disparo do veado. Profundamente desiludida. Profundamente desamparada. E desde então, sussuarana vaga pelos cerrados da vida, em busca de animal de coragem, o qual ele possa profanar, matar e em seguida roubar seu coração para, finalmente, restaurar em si o amor.

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